Devolver a rua às crianças. Devolver as crianças à rua.

A sociedade está em constante transformação e o estilo de vida é disso reflexo: hoje temos crianças que passam mais horas nos estabelecimentos de ensino, com acesso a equipamentos diferentes, interesses e atividades diversas que lhes ocupam o tempo.

Paralelamente, a literatura científica, os meios de comunicação social e as conversas informais realçam de forma frequente e em crescente a importância do brincar para um desenvolvimento harmonioso, incluindo as referências ao brincar na rua, ao ar livre, em contacto com a natureza. Esta preocupação reflete-se também no surgimento de grupos de pais e de associações que têm procurado, nas suas comunidades, criar grupos que incentivem ou proporcionem às crianças mais experiências na rua.

De forma breve, o testemunho de um menino e de duas mães que têm em comum o facto de valorizarem experiências para lá daquelas que se vivem dentro de quatro paredes.

O Luís tem 10 anos e foi à psicóloga por apresentar dificuldades nas aprendizagens escolares e também na relação com os colegas. Quando lhe perguntam o que fez no intervalo, descreve as suas brincadeiras, algumas até parecem divertidas, mas sempre sozinho. O Luís acha que passar o intervalo a jogar no telemóvel não é assim tão interessante e diz que preferia usar esse tempo para brincar “a sério”. Podíamos ajudar o Luís a explicar esta sua ideia aos colegas…

O João nasceu prematuramente, tem agora 2 anos e mora no centro de Lisboa. Todos os dias vai a pé para casa quando sai da escola. Felizmente não é longe! Mas o caminho não é curto, nem de distância, nem de tempo. Há que se demorar pelo parque, calmamente. Visitar os patos do lago, descobrir novos verdes e correr livremente. Sem esquecer os outros meninos com quem se cruza, adora vê-los a brincar e mete-se, entusiasmadíssimo, com os miúdos mais crescidos que estão ali para jogar futebol, mesmo sem receber grande atenção de volta. E agora no inverno!? No inverno é igual, a mãe descreve que esta rotina não muda, apenas se adapta, dizendo que “não existe mau tempo, apenas más roupas”. Acrescenta que, de todos os meninos da sua sala, é o único que ainda não adoeceu este inverno. Acredita que passar pelo menos uma hora por dia na rua, faça frio ou calor, contribui para a sua imunidade. Um dos aspetos que os pais do João consideram que foi essencial para lhe proporcionarem este contacto com o exterior e com o espaço (físico e social) envolvente foi precisamente procurar uma escola perto de casa. A ida ao parque deixa assim de ter que ser planeada para ser parte integrante da sua rotina.

A Maria tem três anos e adora passear. Demora-se a olhar as flores, encantada! Quer levá-las, mas rapidamente se lembra que não pode: precisa de as deixar para as abelhas se alimentarem. E assim segue o seu caminho, indo rapidamente de encontro a outro pormenor, sempre com os olhos vivos e ávidos de conhecimento. A cada passo, reage à realidade com interesse e deslumbramento. Adora questionar, mas também contar o que já ouviu, no passeio do dia anterior. Apesar dos três anos da Maria, caminhar com ela envergonharia muitos adultos. Não há obstáculo que a detenha. Trepa, salta, contorna, … o que for preciso, com agilidade e, na maioria das vezes, já nem precisa de ajuda. A mãe da Maria tem tempo, tempo para se demorar, para brincar, para ensinar as “coisas da natureza”, para “perseguir formigas” e para as 100 pausas que a Maria faz durante o caminho: há sempre muitas perguntas a fazer e muitas coisas a explorar! Claro que faltam as horas de sono, de lazer, de investimento profissional, comenta a mãe da Maria, mas remata que para ela “é uma questão de prioridades”.

“A média do tempo útil dos pais para brincarem com os filhos são 27 minutos por dia apenas” (Carlos Neto, 2018).

Na maioria das vezes o tempo não é o que queremos, é o possível. Mas não é (só) o tempo que conta, é a disponibilidade, é o estar sem pressas, é a presença total, descontraída, sem compromissos, a não ser brincar, claro!

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